Se tem uma coisa que é bem sabida pelos fãs de Doctor Who é que o universo da série é tão vasto, mas tão vasto, que não se limita somente a série de TV. Como sempre falamos aqui no site, histórias incríveis se passam em quadrinhos, livros e áudio dramas.
“Até aí nada de novo”, você deve estar pensando. E realmente, apesar de não ser consumido por 100% dos fãs da série, o universo expandido de Doctor Who é de conhecimento geral… Mas e quando esse universo é tão vasto que acaba vazando pra dentro de universos de outras franquias?
Pois é, muito antes de Assimilation², o crossover de Doctor Who com Star Trek que foi publicado em 2009, nossa amada franquia já tinha colidido com dois universos importantíssimos na cultura pop – dos gigantescos Transformers e dos heróis da Marvel!
Tudo isso graças a um personagem – Death’s Head! Mas pra entender direitinho essa história, vamos precisar nos aprofundar de leve em alguns pontos da época…
Marvel UK
A Marvel já estava estabelecida no Reino Unido desde 1972, onde publicava títulos semanalmente. A princípio, durante os primeiros anos, nada de novo era criado para o mercado britânico, os quadrinhos norte-americanos eram simplesmente levados para a terra da rainha e reprintados, e por decisão do editor-chefe da época, Neil Tennant (sim, o mesmo Neil Tennant dos Pet Shop Boys. E sim, David Tennant tirou o sobrenome daí!), eles ganhavam algumas adaptações nos textos, para se adequarem ao jeito de falar britânico, e algumas ajeitadas nas roupas das personagens femininas, para gerar o mínimo de escândalo possível para a galera conservadora do país.
Somente em 1976, com a criação do Capitão Britânia por Chris Claremont e Herb Trimpe, que os britânicos ganhavam um herói especialmente para eles. Tal criação foi um sucesso esperado, o que fez a empresa iniciar uma tradição de criar revistas no formato mix (como temos aqui no Brasil), colocando outras histórias junto da revista do Capitão para alavancar a popularidade dos demais personagens.
A Marvel ia permanecer bem pelos próximos anos, mas infelizmente, no finalzinho dos anos 70, a editora começaria a ficar mal das pernas, o que faria com que a matriz mandasse a subsidiaria britânica dar uma repaginada em seus planos de ação para se erguer novamente no mercado. Por conta disso, Stan Lee deixaria essas mudanças a cargo de Dez Skinn, editor britânico que já era experiente na área de quadrinhos no Reino Unido.
Lee deu total liberdade para Skinn mexer no que que fosse preciso para levantar a moral da Marvel, e ele por sua vez começou a dar gás na criação de mais material exclusivo para o mercado britânico. Uma das facetas desse plano foi justamente a Marvel se aproximar da BBC com a proposta de produzir uma revista semanal com conteúdo exclusivo sobre a série. Nascia então a Doctor Who Weekly!
Doctor Who Weekly e o cenário de Doctor Who na época
Vamos voltar no tempo, para 1979. Período importantíssimo para a história de Doctor Who, pois a Doctor Who Weekly (atual Doctor Who Magazine) começava sua produção em outubro deste ano. Na época, a série estava em seu auge. Tom Baker era o Doutor da vez, e a franquia ganhava mais e mais popularidade na terra do Tio Sam.
Não era pra menos que a revista oficial da série ia contar com conteúdo exclusivo. Os quadrinhos de Doctor Who existiam desde os anos 60, e até então eram publicados majoritariamente pela TV Comic. Com a entrada da Marvel na jogada esse cenário mudaria. O investimento na Doctor Who Weekly não era pouco. A revista contava com nomes de peso na criação de histórias em quadrinho exclusivas dela, como John Wagner, Pat Mills e Dave Gibbons.
Transformers… ROLL OUT!
Aaaah os anos 80! Aquela época de neon, sintetizadores e música boa! Uma das coisas mais notórias da década eram as animações miradas no público infantil e criadas com o propósito de vender brinquedos. Temos vários exemplos de clássicos consagrados que nasceram com esse intuito, mas sem dúvida os que saltam mais aos olhos são G.I. Joe, Mestres do Universo e Transformers.
Toda franquia que faz sucesso, cedo ou tarde acabava ganhando uma linha de quadrinhos que era lançada pra girar ainda mais a roda do lucro, e com Transformers não foi diferente. A linha de brinquedos da Hasbro, onde objetos do dia-a-dia se transformavam em robôs, já estava estourando nas vendas, em especial por conta da animação de 1984.
Os quadrinhos expandiam ainda mais a franquia, que passou de um simples gancho para vender bonequinhos super irados a uma entidade própria, com um canon complexo e super interessante.
O boom dos robôs porradeiros tomou uma proporção gigantesca no Reino Unido, ganhando uma série de revistas que, inicialmente, reprintavam o que já havia saído nos Estados Unidos, mas por conta do sucesso estrondoso no mercado britânico, foi ganhando inúmeras novas histórias criadas diretamente pela Marvel UK, chegando a ter 322 edições!
Death’s Head e onde os universos realmente colidem
Agora que já sabemos como andavam as frentes da nossa história podemos passar finalmente para o ponto de convergência das três – Death’s Head!
O ano era 1987. Sylvester McCoy estava fresco no papel de Doutor, e a série, apesar de ter passado por alguns hiatos há uns anos, e ter passado por uma mudança na grade de horário da BBC, ia bem e tinha a Doctor Who Magazine (antiga Doctor Who Weekly) já em sua 132ª edição. A revista, agora mensal, mantinha uma média de vendas altas. Não era de se espantar que Doctor Who era uma das marcas que mais dava retorno para a Marvel UK.
Na perspectiva de Transformers, o cenário era tão bom quanto. Os quadrinhos não paravam de sair, e por conta do longa metragem animado do ano anterior a popularidade da franquia só crescia. O quadrinho corrente na época já havia passado da 100ª edição.
Foi em maio desse ano que as estradas começaram a se encontrar. Na edição 133 de Transformers se iniciava o arco “Wanted: Galvatron — Dead or Alive!”, que contava com os acontecimentos após os eventos do filme do ano anterior.
A trama da história girava em torno de Rodimus Prime, o então líder dos Autobots, buscando incessantemente por Galvatron, o vilão líder dos Decepticons, e infelizmente falhando. O protagonista então resolve colocar uma recompensa na cabeça metálica do vilão, e eis que entra o personagem principal do nosso dossiê, o caçador de recompensa Death’s Head.
Determinado a conseguir a recompensa antes dos outros mercenários, Head sai em sua busca e descobre que o paradeiro de Galvatron vai muito além do espaço… o vilão havia viajado pelo tempo. A história então se desenrola parte no presente e parte no passado (nada muito fora do normal pra gente que é fã de Doctor Who).
O personagem de Death’s Head havia sido criado pelo roteirista Simon Furman e pelo artista Geoff Senior, inicialmente como um plot device. Ele apareceria na história para logo ser descartado. Porém, após Geoff mostrar o primeiro desenho do personagem para Furman, o roteirista chegou à conclusão que mais poderia ser tirado do personagem – o feeling foi tanto que ele resolveu criar High Noon Tex, uma história de uma página desconectada de Transformers e lançá-la pouco antes da edição 113 da franquia, só para evitar que a Hasbro reclamasse os direitos do personagem eventualmente.
Pulamos então para Abril de 1988. A Doctor Who Magazine estava em sua 135ª edição, e contava com a história The Crossroads of Time. Esse foi o grande dia em que os universos começaram a colidir. Essa foi a primeira história a mostrar o personagem do Doutor interagindo com outro personagem fora de sua própria franquia.
Partindo do final dos acontecimentos de Wanted Galvatron, Death’s Head acabou se perdendo no vórtice temporal, e por conta disso, no início de nossa história vemos o caçador de recompensas colidindo com a TARDIS. Vale lembrar que, assim como a maioria dos personagens de Transformers, Death’s Head tem um tamanho gigantesco, a ponto de, com o desenrolar da história temos o Doutor LITERALMENTE nas mãos do mercenário metálico.
Para escapar de uma regeneração por esmagamento, nosso Senhor do Tempo recorre ao Tissue Compression Eliminator, um apetrecho usado por seu rival de longa data, o Mestre, para encolher Death’s a um tamanho minúsculo. Provavelmente por conta do tamanho do dito cujo, o plano falha, fazendo-o ficar com meros 2,80m. Apesar de não ser o plano inicial, o resultado é bom o suficiente para o Doutor usar de sua inteligencia para ludibriar o inimigo e jogá-lo em um ponto qualquer, o mais longe possível… Mais precisamente no Século 81.
Por trás da produção da história, o encontro dos dois personagens foi o jeito de matar dois coelhos com um cajadada só. A Marvel precisava de alguma maneira desvincular o personagem da franquia dos robôs gigantes, e reduzi-lo a um tamanho normal era o mais indicado. Aliado a isso, tudo que tinha Doctor Who na capa vendia muito bem. Nada melhor para testar a popularidade do personagem do que colocar ele lado-a-lado com um já bem estabelecido no mercado!
Reduzido a um tamanho humano, em um futuro distante, e com a aprovação dos leitores, o campo estava livre para o caçador de recompensas recomeçar como o protagonista de sua própria história, e 7 meses depois, em dezembro do mesmo ano, Death’s Head #1 começava a ser vendida nas bancas!
Mas não para por aí! Em julho de 1989, em Death’s Head #8, teríamos mais um encontro com o Doutor! Na história Time Bomb, veríamos Josiah W. Dogbolter, um antigo inimigo das histórias do 6º Doutor e Frobisher, contratando o mercenário para assassinar o Senhor do Tempo.
Em dado ponto da história, após muitas indas e vindas, Death’s finalmente encontra o Doutor, que por sua vez descobre que o Caçador de Recompensas está sendo meramente usado. Josiah havia implantado uma bomba em parte dos equipamentos de viagem no tempo fornecidos para Death’s Head. A dupla então consegue desvincular a bomba dos equipamentos e a despacham na base do vilão, que ao detoná-la sela seu próprio destino.
Após a aliança quase que forçada, o Doutor explica a Death’s Head que ele tem um futuro todo pela frente, e que essa seria uma oportunidade de ouro para ele tentar melhorar enquanto indivíduo. O mercenário dá de ombros, e explica que ele, enquanto robô, não precisaria de melhoria alguma. Tal resposta desaponta o Senhor do Tempo, que o expulsa da TARDIS no primeiro local mais próximo. Adivinha onde? No topo do Edifício Baxter, lar de ninguém menos que O Quarteto Fantástico! O Universo Marvel tinha oficialmente entrado na jogada!
Na perspectiva do mundo real, esse outro encontro havia acontecido pelo seguinte motivo:
Death’s Head estava, editorialmente falando, preso em um limbo. Ele era escrito pela Marvel, publicado pela Marvel, mas não estava efetivamente na continuidade dos personagens da Marvel. Esse espaço particular em que ele estava contava com toda sorte de personagens que a Marvel publicava e não pertenciam a universo nenhum. Eles interagiam entre si, mas estavam completamente desconectados de onde a ação realmente acontecia.
O Doutor tinha servido de gancho para tirá-lo de vez do universo de Transformers, ou seja, nada mais justo do que o Doutor servir de ponte para colocá-lo no Universo Marvel. Isso se aliou, claro, ao fato de que tudo que tinha a cara do Doutor ganhava um boost significativo nas vendas… e colocar a história terminando no meio da continuidade da Marvel daria um boost maior ainda!
Death’s Head de lá pra cá
Apesar da revista solo não ter durado muito mais (chegando somente até a sua 10ª edição), o personagem não foi totalmente esquecido. Em 91 ele fez um cameo no universo de Doctor Who, na história Party Animals, da Doctor Who Magazine 173.
Em 93, o personagem ganhou uma nova revista – The Incomplete Death’s Head, que contava com uma versão repaginada do personagem, que seguia com os acontecimentos da revista solo anterior.
Death’s Head era visto majoritariamente encontrando personagens grandes da Marvel (como O Coisa, Homem de Ferro e Mulher Hulk) e fatidicamente caindo na porrada com eles. E de lá pra cá, o personagem chegou a se afiliar com organizações conhecidas da Marvel como a E.S.P.A.D.A., e apareceu em diversas revistas de outros personagens da empresa.
Head ganhou uma base de fãs própria, tornando-se um personagem cult, especialmente no mercado leitor britânico. O personagem ganhou uma terceira versão que foi introduzida na continuidade em 2005, como resultado de uma votação que a Marvel fez em seu site oficial. Os fãs tiveram a oportunidade de escolher entre quatro personagens, cujo vencedor ganharia um título na linha Marvel’s Amazing Fantasy. Death’s Head ganhou com esmagadores 49% dos votos!
Conclusão
UFA! Quanta coisa! Mas sim, essa é a história de como esses três universos que aparentemente não tinham nada a ver um com o outro tem um ponto em encontro. De Transformers para Doctor Who e então para Marvel… que jornada!
Você gostaria de ver o personagem reaparecendo nos quadrinhos de Doctor Who? E um futuro crossover entre Doctor Who e uma outra franquia? Conta aí pra gente, qual seu encontro dos sonhos envolvendo nossa tão amada franquia aqui nos comentários 😉